Aqui você vai encontrar:

– A essencialidade e o ICMS

– Decisões recentes do STF

– A Lei Complementar 194, de 23 de julho de 2022

– Reflexos da decisão do STF

A essencialidade e o ICMS

Com o alto preço dos combustíveis, um tema que tem tomado os noticiários, mesmo aqueles não especializados em Direito, é o da limitação do ICMS sobre combustíveis, a partir da Lei Complementar nº 194, de 23 de julho de 2022.

Vamos ver o que está por trás dessa limitação.

O ICMS é um imposto que incide sobre a circulação de mercadorias e prestação de alguns serviços (telecomunicação e transporte intermunicipal e interestadual). É um imposto sobre consumo, já que incide sobre a venda de bens e serviços.

Ele é de competência estadual e do Distrito Federal e, com o passar dos anos, tornou-se altamente complexo, não apenas pelas diferentes legislações de cada Ente, como também pelas diferentes peculiaridades de produtos e setores econômicos, além dos conhecidos benefícios fiscais, estando no centro de diversas discussões judiciais.

Não é à toa que diversas propostas de reforma tributária miram uma alteração da estrutura do ICMS e até a sua eliminação, já que existe uma relativa concordância de que o ICMS torna o ambiente de negócios no Brasil hostil e afasta investimentos, além de representar um alto custo de gerenciamento para as empresas.

Um dos aspectos mais relevantes desse imposto, mas pouco observado pelos Entes, é a previsão constitucional de que ele poderá ser seletivo, em razão da essencialidade das mercadorias e serviços (art. 155, § 2º, III, da CF/88). E o que isso significa?

Isso significa que, apesar de um desejo de uma tributação que observe a capacidade econômica do contribuinte (art. 145, § 1º, da CF/88), o legislador constituinte também autorizou que o ICMS seja graduado de acordo com a essencialidade dos bens ou serviços (independentemente, portanto, da capacidade do contribuinte).

Assim, tributos essenciais para a vida dos cidadãos deveriam estar sujeitos a uma alíquota menor, enquanto produtos supérfluos seriam tributados a uma alíquota maior.

A primeira dificuldade óbvia em se aplicar essa regra é a de definir o que é um produto essencial. Quais os parâmetros e em quais aspectos? Um produto pode ser essencial para uma determinada atividade, mas não ser para outra. Um produto pode ser essencial em determinada região do país, mas não em outra. Um produto pode ser essencial, mas possuir alternativas similares de baixo custo que o substituam.

A segunda dificuldade é a de definir qual será, então, a gradação da tributação, uma vez definida a essencialidade dos produtos e serviços. Haverá uma tabela escalonada? Como definir qual a gradação razoável e que atenda a essa determinação constitucional?

E, por fim, há a dificuldade em se definir se essa previsão é uma regra obrigatória, ou uma faculdade dos Estados, já que usa o verbo “poderá”, aparentando conferir uma faculdade ao legislador estadual.

Voltando aos combustíveis, como um exemplo, seria possível alegar que eles não seriam bens essenciais, já que apenas uma pequena parcela da população possui automóveis, ou depende deles para sobreviver.

Ainda que se alegue que o Brasil está fortemente baseado no transporte rodoviário, seria possível argumentar que há alternativas, ou que o país deveria investir em alternativas logísticas que diminuam a dependência dos combustíveis.

A energia elétrica é também outro exemplo dessas dificuldades, já que em um passado não muito distante era acessível apenas à parcela da população mais abastada, não sendo um bem disponível para a maior parte do país. Hoje, essa situação, de certo modo, mudou.

O tempo e a evolução social parecem ter um importante papel na percepção da essencialidade, pois com eles vêm a evolução tecnológica e a propagação de serviços e bens novos, além, é claro, da evolução econômica do país.

E, em meio a toda essa dificuldade, a quem competiria a definição da essencialidade? Parece-nos que ao legislador estadual, como melhor agregador das demandas locais e melhor local de discussão acerca de todos esses aspectos.

Como muitos aspectos no Brasil, porém, o tema acabou no Judiciário.

Decisões recentes do STF

O tema da essencialidade do ICMS aparece sempre nas aulas de graduação e pós-graduação em Direito Tributário, mas não raro é visto com desânimo, na crença de que a essencialidade nunca será verdadeira observada.

Parte disso decorre do fato de que muitos bens que a atual sociedade considera como essenciais são fortemente tributados.

Esse tema, porém, sofreu uma reviravolta em novembro de 2021, quando o Supremo Tribunal Federal julgou o tema de repercussão geral 745 (RE 714139), fixando a seguinte tese:

“Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços”.

Uma das dúvidas mencionadas acima parece ter sido respondida pelo STF, ao indicar que a adoção ou não da seletividade seria uma faculdade do legislador, mas que, uma vez assim verificada, deve a essencialidade ser observada.

No caso, julgava-se a constitucionalidade da exigência, pelo Estado de Santa Catarina, de ICMS de forma mais gravosa sobre telecomunicação e energia elétrica.

O Tribunal, por maioria, acatou o argumento do contribuinte e, mais adiante, modulou os efeitos de sua decisão, para que ela produza efeitos a partir de 2024, ressalvadas ações ajuizadas até 05/02/2021 (início do julgamento de mérito).

A modulação, claro, indica uma clara janela de oportunidade para que os Estados possam adequar suas legislações e se programarem em relação à redução de tal tributação.

Na esteira desse julgamento, em fevereiro de 2022, a Procuradoria-Geral da República ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7077, para questionar a legislação do Rio de Janeiro, que tributava a energia elétrica e telecomunicações em 27% e 28%, além de cobrar 2% adicionais para o Fundo de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais.

Em abril de 2022, foram ajuizadas outras 25 ADIs, para questionar as legislações dos demais Estados (incluindo de SC): 7108 (PE), 7109 (MS), 7110 (PR), 7111 (PA), 7112 (SP), 7113 (TO), 7114 (PB), 7115 (MA), 7116 (MG), 7117 (SC), 7118 (RR), 7119 (RO), 7120 (SE), 7121 (RN), 7122 (GO), 7123 (DF), 7124 (CE), 7125 (ES), 7126 (AP), 7127 (PI), 7128 (BA), 7129 (AM), 7130 (AL), 7131 (AC) e 7132 (RS).

Dessas ADIs, em agosto de 2022, seis tiveram julgamento (Pará, Tocantins, Minas Gerais, Rondônia e Goiás), tendo sido julgadas procedentes à unanimidade, para reconhecer a impossibilidade da tributação majorada, tendo sido também aplicada a mesma modulação de efeitos do Tema 745.

O Tribunal, portanto, parece estar consolidando seu entendimento de que a energia elétrica e a telecomunicação, dada a evolução e atual contexto social, assumiram feição de serviços essenciais para o país, não podendo ter tributação majorada.

Essa decisão representa, em certa medida, uma forte e rara situação de legislação imprópria, já que a definição do uso da alíquota base do ICMS acaba representando, de certa forma, uma interferência na competência do Estado, que poderia, por exemplo, definir outra forma de gradação da tributação, como mencionamos acima, em comparação com outros bens e serviços essenciais.

O tema, a nosso ver, sempre irá comportar discussão e, provavelmente, irá retornar à pauta dos Tribunais no futuro, motivo pelo qual é importante que os Legislativos dos Estados estejam sempre atualizados em relação à evolução econômica e social, para buscar refletir essa regra da essencialidade de forma efetiva e não apenas visando a arrecadação.

A Lei Complementar 194, de 23 de julho de 2022

Por um motivo não diretamente relacionado com esse julgamento do STF, mas talvez por uma coincidência do destino, o país enfrenta uma situação de alto preço dos combustíveis.

Em meio a diversas medidas adotadas pelo Governo Federal, foi aprovada a Lei Complementar 194, de 23 de julho de 2022, que alterou o Código Tributário Nacional e a Lei Complementar 87/96, para estabelecer que “As operações relativas aos combustíveis, ao gás natural, à energia elétrica, às comunicações e ao transporte coletivo, para fins de incidência de imposto de que trata esta Lei Complementar, são consideradas operações de bens e serviços essenciais e indispensáveis, que não podem ser tratados como supérfluos” (novo artigo 32-A, inserido na LC 87/96).

O Congresso, assim, definiu a essencialidade de alguns serviços e produtos que representam importante fonte de custeio para os Estados, pois estavam sujeitos a alíquotas mais gravosas.

Pelo que tem sido reportado pela mídia, o objetivo principal de tal legislação era a redução do preço dos combustíveis, mas a sua aprovação acaba tendo um confortável contexto jurisprudencial, como visto acima.

Com certeza, será ainda discutível a competência da União para aprovar tal limitação à competência dos Estados. Ainda, outro ponto importante a se verificar será o efeito dessa nova previsão em diversos benefícios fiscais e regimes especiais aplicáveis a esses setores.

Reflexos da decisão do STF

Por fim, um reflexo dessas decisões do STF, e, agora, da LC 194/2022, é o adicional do ICMS aos Fundos de Combate à Pobreza (FECP), autorizados pelo artigo 82 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal (ADCT).

Os Estados são autorizados a criar um adicional do ICMS para financiar tais Fundos de até dois pontos percentuais sobre produtos e serviços supérfluos.

Ainda, o artigo 83 do ADCT previu expressamente que a lei federal deverá determinar os produtos supérfluos para tal finalidade. Essa lei, porém, nunca havia sido editada.

Esse tema, como visto acima, foi já objeto da ADI 7077, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, contra o Estado do Rio de Janeiro.

Com o entendimento do STF, assim, parece-nos que a energia elétrica e telecomunicação não poderão ser base de cálculo do adicional ao FECP, como ocorre em muitos Estados.

Ainda, a LC 194/2022 parece vir suprir a lacuna legislativa prevista no ADCT, e efetiva acabou disciplinando os produtos e serviços essenciais e que não poderão, igualmente, ser submetidos ao adicional ao FECP pelos Estados.

Outro reflexo esperado era o aumento de ações judiciais sobre o tema, o que, porém, teve efeito diminuído com a modulação de efeitos aplicada pelo STF, em uma rara situação de correta aplicação desse instituto.

Ainda, a rápida movimentação da PGR, ao ajuizar as ADIs irá diminuir sensivelmente o potencial multiplicador de litígio nesse tema, evitando-se milhares de ações sobre o tema. Outra rara situação de movimentação do órgão em temas tributários, com olhar estratégico e visando a harmonização do Sistema Tributário Nacional.

Ainda haverá muitas discussões envolvendo o ICMS, com certeza, e esse é apenas um dos exemplos de como a complexidade desse imposto afeta a todos os cidadãos.

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