Arestrição à aquisição e arrendamento de terras por estrangeiros é assunto bastante discutido nos últimos anos, dado o interesse no aumento do investimento estrangeiro no país, especialmente no agronegócio e no setor energético, e o caráter estratégico1 assumido pelas restrições à aquisição e arrendamento.

A aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, que é objeto de ações no Supremo Tribunal Federal (STF) e de projetos de lei, ganhou novo capítulo com a edição da Instrução Normativa do Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra) n° 88, de 13 de dezembro de 2017 (IN n° 88), que atualiza os requisitos e procedimentos de autorização para que estrangeiros possam adquirir e arrendar terras no Brasil.

A pessoa ou empresa estrangeira que pretende adquirir ou arrendar imóvel rural deve observar diversos parâmetros legais, em especial aqueles impostos pela Lei n° 5.709, de 7 de outubro de 1971, pelo Decreto n° 74.965, de 26 de novembro de 1974, e pela Lei n° 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Os requisitos incluem autorização do Incra e limitações de extensão das áreas adquiridas ou arrendadas.2

Conforme o artigo 1º, § 1º da Lei n° 5.709/71, as restrições também se aplicam às sociedades brasileiras com maioria de capital social de titularidade de pessoas estrangeiras naturais ou jurídicas que residam ou tenham sede no exterior.

A equiparação dessas sociedades brasileiras às sociedades estrangeiras (sujeitas às restrições impostas pela Lei nº 5.709/71) foi contestada após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), que, em seu artigo 171, considerava brasileira qualquer empresa constituída sob as leis brasileiras e com sede e administração no País, sem distinção quanto à composição de seu capital social. O parecer da Advocacia Geral da União (AGU) GQ-22, de 1994, reconheceu a não recepção do artigo 1º, § 1º da Lei n° 5.709/71 pela CF/88 e afastou as restrições à aquisição de terras por empresas brasileiras com maioria de capital formada por estrangeiros.

Mesmo após a revogação do artigo 171 da CF/88 pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995, prevaleceu o entendimento de que a equiparação de sociedade brasileira a sociedade estrangeira não era válida, já que não teria havido a repristinação3 do §1º do artigo 1º da Lei nº 5.709/71 (Parecer AGU nº GQ-181).

Esse entendimento foi alterado em 2010, quando o Parecer AGU n° LA-01 de 19 de agosto, aprovou o Parecer CGU/AGU-1/2008-RVJ, que sustenta a constitucionalidade da referida equiparação, desde que, além da maioria do capital social por estrangeiros, esses também possuam controle efetivo sobre a empresa, nos termos da legislação societária. O parecer da AGU vincula toda a Administração Federal (artigo 40, §1º da Lei Complementar n° 73, de 10 de fevereiro de 1993).

Em favor da segurança jurídica, a AGU viu-se obrigada a reconhecer validade jurídica das aquisições de terras finalizadas entre 1994 e 2010, ainda que em desacordo com o seu novo entendimento. De fato, as operações envolvendo pessoas jurídicas brasileiras equiparadas a estrangeiras ocorridas nesse período não estão sujeitas às restrições da Lei n° 5.709/71, conforme determinado pela Portaria Interministerial n° 4, de 25 de fevereiro de 2014.4

À revelia das conclusões da AGU em 2010, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo emitiu o Parecer n° 461/12-E, de 2012, com força normativa, em que reconheceu a não recepção do artigo 1º, § 1º, da Lei nº 5.709/1971 pela CF/88 e dispensou os tabeliões e oficiais de registro de observarem as restrições impostas pela Lei n° 5.709/71 e pelo Decreto nº 74.965/74 à aquisição de imóveis rurais por pessoas jurídicas brasileiras com maioria de capital detida por estrangeiros.

Parecer AGU n° LA-01/10 não deveria vincular a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, por se tratar de órgão da Estadual. Porém, isso não impediu que as conclusões da Corregedoria fossem contestadas na Justiça, por meio de ação ajuizada pelo Incra e pela União perante o STF5. Em setembro de 2016, o Ministro Marco Aurélio Mello concedeu liminar para suspender os efeitos do Parecer n° 461/12-E até o julgamento definitivo da ação e sinalizou pela constitucionalidade das restrições às empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro. Essa liminar foi juntada à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 342, em curso no STF, pela qual a Sociedade Rural Brasileira pleiteia o reconhecimento da não recepção do artigo 1º, § 1º da Lei n° 5.709/71 pela CF/88 e também questiona o Parecer CGU/AGU-1/2008-RVJ, aprovado pela AGU e pela Presidência da República, que considerou tal artigo constitucional.

Dentre as limitações impostas pela Lei n° 5.709/71, em conjunto com o Decreto n° 74.965/74, uma das mais relevantes é a necessidade de autorização do Incra para aquisição de propriedade e para o arrendamento de imóveis rurais. Como o Incra não tem prazo legal para autorizar ou proibir as operações, o processo pode levar meses ou até anos, o que praticamente inviabiliza o investimento estrangeiro ou incentiva a adoção de estruturas para contornar as restrições legais. Exemplos são o uso de direitos de superfície, usufruto ou parceria rural, ou a estruturação de arranjos societários ou contratuais que afastam o capital estrangeiro do controle societário da pessoa jurídica brasileira com investimento estrangeiro.

Diante de tal cenário, a IN n° 88 atualizou os procedimentos de autorização para a aquisição e o arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros e pessoas jurídicas brasileiras a eles equiparadas e revogou a Instrução Normativa n° 76, de 23 de agosto de 2013, que tratava do mesmo tema.

Por um lado, observa-se que a IN nº 88 pouco inovou em relação à sua precursora e não estipulou prazo para a análise das operações pelo Incra. Por outro, ela tem o mérito de organizar, esclarecer e detalhar diversos procedimentos, documentos e informações necessárias para a obtenção do aval do Incra que estavam dispersos e trouxe algumas mudanças relevantes. As principais novidades são:

Restrição quanto à área do município

Segundo o artigo 12 da Lei n° 5.709/71, a soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras não pode ultrapassar 25% da área do município onde está o imóvel. Além disso, as pessoas de mesma nacionalidade não podem ser proprietárias de mais de 10% da área do município. Porém, a IN n° 88 tornou claro que o Congresso (ouvido o Conselho de Segurança Nacional – quando o imóvel estiver em faixa de fronteira ou área considerada indispensável à segurança nacional) poderá autorizar a aquisição ou arrendamento de área superior a esses limites municipais.

Pessoa jurídica brasileira equiparada à estrangeira

A IN nº 88 conceitua a pessoa jurídica brasileira equiparada à estrangeira como sendo aquela constituída segundo as leis brasileiras, com sede no Brasil, controlada por pessoas estrangeiras (naturais ou jurídicas) residentes ou com sede no exterior. Vide o art. 15, §1º:

"Art.15 (...)

§1º Para que ocorra a equiparação de pessoa jurídica brasileira à pessoa jurídica estrangeira, é necessário que seu(s) sócio(s) estrangeiro(s), na forma descrita no caput, detenha(m) a maioria do capital social, ou que sua participação acionária lhe(s) assegure o poder de conduzir as deliberações da assembleia geral, de eleger a maioria dos administradores, de dirigir as atividades sociais e de orientar o funcionamento dos órgãos da empresa, nos termos do § 1º, do art. 1º da Lei nº 5.709, de 07 de outubro de 1971, e item 273 do Parecer LA CGU/AGU Nº 01/2008, publicado no DOU, de 23 de agosto de 2010."

Decorre dos itens 221 a 226 do Parecer AGU n° LA-01/10, em conjunto com o artigo 116 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que é necessário o uso efetivo do poder de controle sobre a empresa brasileira pelo estrangeiro para caracterizar a equiparação. Nessa linha, a IN nº 88 e o Parecer AGU nº LA-01/10 adotam o conceito de controle societário para definir a pessoa jurídica brasileira equiparada a estrangeira. Porém, a restrição prevista na Lei nº 5.709/73 trata apenas de uma das possíveis facetas do controle, que é a titularidade, por estrangeiro ou empresa estrangeira, da maioria do capital social – a extensão desse conceito é matéria de interpretação.6

Ao estender as restrições à aquisição e arrendamento de imóvel rural às pessoas jurídicas brasileiras sob controle estrangeiro, a norma do Incra apoiou-se no entendimento do Parecer AGU nº LA-01/10 e na presunção de constitucionalidade do art. 1º, §1º da Lei nº 5.709/71. Mas é evidente que se o STF decidir pela não recepção do art. 1º, §1º da Lei nº 5.709/71 no julgamento definitivo da ADPF n° 342, as restrições da IN nº 88 a pessoas brasileiras poderão ser questionadas judicialmente, já que a decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante aos órgãos do Poder Público (art. 10, §3º da Lei nº 9.883, de 3 de dezembro de 1999).

No mais, a IN nº 88, a exemplo da IN nº 76 de 23 de agosto de 2013, procura estender a eficácia da restrição não apenas a repartições públicas federais, mas a toda e qualquer aquisição/arrendamento de terras, vinculando a administração pública de forma geral. Por ora, a extensão do âmbito da eficácia encontra justificativa apenas na decisão liminar do STF.

Brasileiro casado com estrangeiro

Segundo o artigo 10 da IN n° 88, as restrições à aquisição e ao arrendamento de imóvel rural também se aplicam à pessoa natural brasileira casada com estrangeira, desde que o regime de bens do casamento determine a comunicação do direito de propriedade e o imóvel rural integre a comunhão. A extensão das restrições é compreensível em caso de aquisição por um cônjuge casado em regime de comunhão (e havendo comunicação do imóvel rural), pois nesse caso é o casal que adquire o imóvel e, consequentemente, o estrangeiro.

O mesmo raciocínio não se aplica ao arrendamento, que não transfere a propriedade, mas apenas o direito de uso e gozo sobre um imóvel rural7. O imóvel rural não passará a integrar o patrimônio do estrangeiro se seu cônjuge se tornar arrendatário e, por conseguinte, não estará sujeito às restrições da Lei nº 5.709/71. Não importa que a Lei nº 8.629/93 aplique ao arrendamento todas as restrições da Lei nº 5.709/71, uma vez que não há norma autorizando a comunicação do arrendamento de um cônjuge para outro, como no caso da aquisição de bens regida pelo Código Civil. Restrições impostas ao arrendatário brasileiro casado com estrangeiro poderão ser contestadas pelos interessados.

Recurso administrativo

Uma novidade trazida pela IN nº 88 é a possibilidade de o requerente interpor recurso administrativo dirigido ao Superintendente Regional do Incra caso não obtenha autorização para aquisição ou arrendamento. A Superintendência Regional terá prazo máximo de cinco dias para reconsiderar ou encaminhar o recurso para o Comitê de Decisão Regional, que o julgará em até trinta dias. Se o recurso for indeferido, o requerente poderá recorrer à Coordenação Geral de Cadastro Rural, que terá trinta dias para decidir.

Nulidade

Conforme o artigo 15 da Lei n° 5.709/71, a aquisição de terras em desacordo com essa lei é nula, cabendo às Corregedorias Gerais dos Tribunais de Justiça ou ao Juízo de Direito da comarca do imóvel declarar a nulidade. Contudo, a IN n° 88 ressalva que essa nulidade não afetará terceiros de boa-fé que já tiverem preenchido as condições de usucapião do imóvel (determinadas pelo Código Civil e pela Lei n° 6.969, de 10 de dezembro de 1981).

Além disso, a IN n° 88 inova ao permitir que aquisições e arrendamentos realizados por pessoa natural ou jurídica estrangeira em desacordo com a Lei n° 5.709/71 até 14 de dezembro de 2017 sejam regularizadas. Interessados devem enviar requerimento a ser analisado pelo Incra.

Isso não é necessário para as pessoas jurídicas brasileiras equiparadas a estrangeiras que tenham adquirido ou arrendado imóveis rurais entre 1994 e 2010, pois essas não estão sujeitas às restrições da Lei n° 5.709/71, nos termos da Portaria Interministerial n° 4, de 25 de fevereiro de 2014 e ao art. 15, §2º da própria IN nº 88.

Projetos de lei

Diante de tamanha controvérsia, não surpreende a tramitação de projetos de lei como o PL nº 4.059/2012 (apensado ao PL nº 2.289/2007), que, como regra, libera as sociedades brasileiras controladas por estrangeiros das restrições à aquisição de terras. Como o projeto está parado na Câmara dos Deputados há mais de dois anos, a Casa Civil preparou um substitutivo (ainda não encaminhado ao Congresso) que também pretende liberar a aquisição e o arrendamento de terras por empresas com controle estrangeiro.

Além disso, há projeto de lei encaminhado pelo Ministério de Minas e Energia à Casa Civil e à Fazenda para reformular o modelo do setor elétrico. O projeto pretende extinguir os limites para aquisição de imóveis rurais por pessoas jurídicas brasileiras controladas por pessoa física ou por pessoa jurídica estrangeira que sejam destinados à execução das atividades de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.

A aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros depende de uma solução definitiva, seja pelos julgamentos pendentes no STF, seja pela promulgação de nova legislação que trate da matéria – em especial, sobre a equiparação de sociedades brasileiras controladas por estrangeiros a sociedades estrangeiras para fins de aplicação de restrições para aquisições e arrendamentos de terras. A ausência de solução definitiva afeta a realização de investimentos em áreas estratégicas do país, especialmente no tocante ao agronegócio e ao setor energético.

Footnotes

[1] De acordo com o Parecer AGU n° LA-01 de 19 de agosto de 2010, que aprovou o Parecer CGU/AGU-1/2008-RVJ, o caráter estratégico das restrições à aquisição e ao arrendamento diz respeito a evitar, entre outros: "a) expansão da fronteira agrícola com avanço do cultivo em áreas de proteção ambiental e em unidades de conservação; b) valorização desarrazoada do preço da terra e incidência da especulação imobiliária gerando aumento do custo do processo de desapropriação voltada para a reforma agrária, bem como a redução do estoque de terras disponíveis para esse fim; c) crescimento da venda ilegal de terras públicas; d) utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição na aquisição dessas terras; e) aumento da grilagem de terras; f) proliferação de "laranjas" na aquisição dessas terras; g) incremento dos números referentes à biopirataria na Região Amazônica; h) ampliação, sem a devida regulação, da produção de etanol e biodiesel; e i) aquisição de terras em faixa de fronteira pondo em risco a segurança nacional."

[2] Além da autorização do Incra, a pessoa natural estrangeira apenas poderá adquirir área superior a 50 Módulos de Exploração Indefinida (MEI) mediante autorização do Congresso Nacional. Já a pessoa jurídica estrangeira ou a ela equiparada só poderá adquirir área superior a 100 MEI mediante autorização do Congresso. O MEI é uma unidade de medida, expressa em hectares, a partir do conceito de módulo rural, para o imóvel com exploração não definida. A dimensão do MEI varia entre cinco e cem hectares, de acordo com a Zona Típica de Módulo (ZTM) do município de localização do imóvel rural.

[3] A repristinação de uma norma ocorre quando a lei revogada é restaurada por ter a lei revogadora perdido a vigência. A repristinação só acontece por disposição expressa, conforme o artigo 2º, §3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

[4] O texto dessa portaria corrobora a Instrução Normativa conjunta nº 1, de 27 de setembro de 2012, em que o Incra (acompanhado de certos ministérios) permitiu a regularização de imóveis junto ao Sistema Nacional de Cadastro Rural para as contratações anteriores a 2010 por pessoa jurídica brasileira equiparada a estrangeira. A IN nº 88 também garante o direito de as pessoas jurídicas brasileiras equiparadas a estrangeiras que adquiriram ou arrendaram imóveis entre 1994 e 2010 cadastrarem ou recadastrarem seus imóveis sem nenhuma sanção no Sistema Nacional de Cadastro Rural, em consonância com a já referida Portaria Interministerial n° 4, de 25 de fevereiro de 2014.

[5] Ação Ordinária Cível nº 2463.

[6] O controle também pode ser exercido de outras formas, como no caso de controle "minoritário" (fundado em número de ações inferior à metade do capital votante), "administrativo ou gerencial" (não baseado em participação acionária, mas unicamente em prerrogativas diretoriais) e externo (influência dominante exercida por meios diversos do voto, por quem não é sócio ou acionista da companhia). Para uma descrição aprofundada das diversas modalidades possíveis de exercício de controle recomenda-se: Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho. Poder de Controle na Sociedade Anônima. 5ª ed. Editora Forense. Rio de Janeiro. 2008, pp. 64 a 89.

[7] Art. 3º do Decreto nº 59.566, de 14 de novembro de 1966.

Originally published by Jota .

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