Resumo: Este trabalho se propõe a uma breve digressão sobre enfrentada pela autoridade antitruste para distinguir entre uma ou mais infrações da ordem econômica em contextos de colusão endêmica. Apresenta o problema circunstanciado e as dificuldades práticas dele decorrentes, tais como a garantia de proporcionalidade das sanções impostas e os desafios para a efetividade do programa de leniência e de acordos de cessação de conduta. Aborda como a doutrina e a jurisprudência estrangeira endereçam questão semelhante ao analisar o problema das múltiplas conspirações. Ressalta que a experiência estrangeira tem aplicação limitada ao contexto brasileiro, pontuando as especificidades da legislação pátria. Sugere medidas de natureza jurídica e política para o enfrentamento da questão, focando na flexibilidade da atuação da autoridade ao conduzir investigações e impor sanções.

Palavras-chave: Cartel, responsabilização administrativa, colusão endêmica, individualização de condutas; proibição de bis in idem.

Keywords: Cartel, administrative liability, endemic collusion, individualization of punishment, ne bis in idem.

1. Contando cartéis: uma experiência contraintuitiva

Cartéis são acordos secretos entre concorrentes por meio dos quais esses fixam preços e dividem mercados, alocando entre si clientes e ou regiões (SALOMÃO FILHO, 2003). Por essa razão, são considerados a mais grave infração à ordem econômica, sendo classificados como um ato ilícito por seu objeto – não havendo espaço para discussão dos efeitos líquidos gerados pela conduta praticada. Foram assim eleitos como uma prioridade por distintas autoridades de defesa da concorrência no mundo em razão dos efeitos deletérios por eles provocados (ARAUJO E CHEDE, 2012). No Brasil, cartéis são reprimidos por normas criminais, cíveis e administrativas, responsabilizando pessoas físicas (apenas estas em âmbito criminal) e jurídicas pelos atos pelos atos de colusão praticados (MARTINEZ, 2013).

JEPHCOTT e LUBBIG (2003) apontam que há características que tornam determinados mercados mais propensos à colusão, tais como a oferta de produtos homogêneos ou de baixa diferenciação, interação frequente entre concorrentes em contextos lícitos e significativo grau de transparência sobre informações concorrencialmente relevantes.

Tais definições dogmáticas são acompanhadas por um sentimento quase intuitivo de que cartéis funcionam como outras organizações criminais, com uma hierarquia de decisões, códigos e procedimentos peculiares que conferem uma identidade única a um conluio. É nesse espírito que se noticia, por exemplo, a existência do cartel d[o] cimento1, d[o] metrô2, d[as] britas3, d[as] vitaminas4, dentre tantos outros. A realidade, no entanto, insiste em ser mais desafiadora.

Algumas dessas indústrias, em razão de determinadas características enfrentam sofrem com a colusão de forma mais aguda, com múltiplas frentes de interações entre concorrentes, sendo algumas delas problemáticas do ponto de vista da legislação antitruste.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE (2016) reconhece essa propensão classificando determinados mercados como de "colusão endêmica". Tais mercados, por serem foco de múltiplos episódios da atuação concertada entre competidores, deveriam assim receber esforços adicionais das autoridades na implementação da política antitruste56

No entanto, a simples eleição de mercados suscetíveis à "colusão endêmica" a um maior escrutínio pelas autoridades não é suficiente para garantir a adequada solução do problema. Isso porque, nessas indústrias, o contexto de múltiplas e constantes interações entre concorrentes7 impõe um desafio à necessidade de individualização de condutas, correndo-se o risco imprecisões e distorções na decisão de investigar e punir condutas.

Essa questão ganha cores ainda mais especiais quando se considera que as autoridades concorrenciais não tomam conhecimento ao mesmo tempo de todos os atos potencialmente ilícitos praticados em determinada indústria. Dessa forma, decisões importantes para instrução e julgamento das investigações podem negligenciar aspectos importantes da dinâmica anticompetitiva havida.

Dentre tais decisões estão, por exemplo, assinatura de acordos de leniência, abertura de novas investigações ou aporte de novas evidências a investigações em curso, imposição de novas penalidades, etc. Essas decisões tomam por base perguntas elementares como "este é um novo cartel ou novos fatos de um cartel já detectado?", "estes fatos constituem continuidade de uma conduta anterior ou uma nova conduta?", "há, neste caso, dois cartéis correndo em paralelo ou um único cartel com múltiplos focos de atuação?". Tais perguntas, embora pareçam simples, são de difícil resposta em indústrias em que os concorrentes estão habitualmente entrelaçados em uma teia de relações anticompetitivas.

Nesse sentido, este trabalho se propõe a uma breve digressão sobre o desafio enfrentado pela autoridade antitruste ao tentar individualizar condutas referentes a infrações da ordem econômica em contextos de colusão endêmica. Na Seção 2, apresenta-se o problema circunstanciado as dificuldades práticas dele decorrentes, passando-se a uma análise sumária da experiência de autoridades estrangeiras no enfrentamento da questão na Seção 3. Na Seção 4, exploram-se as possibilidades de a legislação vigente oferecer respostas que possam endereçar a questão. A Conclusão segue.

Footnotes

1 Nesse sentido: https://jornalggn.com.br/noticia/as-acoes-contra-o-cartel-do-cimento. Acesso em 12.12.2017.

2 Nesse sentido: http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/cartel-do-metro-mpf-denuncia-9-pessoas-por-lavagem-de-dinheiro. Acesso em 12.12.2017.

3 Nesse sentido: https://oglobo.globo.com/economia/cade-faz-acordo-com-empresas-condenadas-no-cartel-das-britas-3054800. Acesso em 12.12.2017.

4 Nesse sentido: http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL20898-9356,http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL20898-9356,00.html. Acesso em 12.12.2017.

5 A OCDE exemplifica como indústrias propensas à colusão endêmica: químicos, serviços de construção, licitações públicas, cimento e concreto, e alimentos: http://www.oecd.org/competition/globalforum/competition-industries-endemic-collusion.htm. Acesso em 12.12.2017.

6 Importante ressaltar que, para além das características apontadas acima que levariam alguns mercados à maior propensão à colusão, outros fatores podem também interferir na recorrência de conluios em determinadas indústrias (ou na percepção que se têm dela), tais como: a interação entre características próprias de determinado agente econômico e o ambiente competitivo de determinado mercado; maior tolerância cultural à formação de acordos em determinadas indústrias; incentivos à colusão que superam os riscos decorrentes da atuação das autoridades concorrenciais; etc. (OCDE, 2015). De mais a mais, a atuação das autoridades concorrenciais, que podem priorizar determinados setores ao destinar seus esforços investigativos, opera também um papel importante da percepção da recorrência dos ilícitos concorrenciais em determinado setor.

7 Tais interações podem variar de reuniões em que nada se decide a acordos exitosos sobre preço e/ou participação de mercado.

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