RESUMO: Enquanto se discute o futuro da delação premiada no Brasil, a mais recente novidade é a aprovação da Lei n° 13.506, de 13 de novembro de 2017, que reestruturou o processo administrativo sancionador na esfera de atuação do Banco Central do Brasil ("BC") e permitiu a assinatura de acordos em troca de redução ou exclusão de penas. Porém, para que esses novos mecanismos possam fortalecer a detecção e punição de ilícitos e se consolidar no campo financeiro, ainda é preciso superar alguns desafios, em especial no que toca à interação entre as investigações administrativas e criminais. O presente estudo procura expor quais são os principais desafios e as críticas aos novos acordos sob a Lei n° 13.506/17, além de oferecer sugestões para o aprimoramento desses institutos.

PALAVRAS-CHAVE: Delação Premiada; Sistema Financeiro; Banco Central do Brasil; Ministério Público; Lei n° 13.506/17.

1. INTRODUÇÃO

Os modelos normativos que permitem confessar ilícitos e cooperar com investigações em troca de extinção ou redução de penas não são mais uma novidade para os brasileiros. Institutos que asseguram benefícios a troco de colaboração efetiva e espontânea serão denominados neste estudo pelo termo "delação premiada", gênero do qual o acordo de leniência e outros tipos de acordos com autoridades são espécie.3

O acordo de leniência é utilizado no contexto da repressão aos cartéis desde o ano de 2003,4 e até setembro de 2017 já haviam sido firmados 94 acordos pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Para entender a importância desse instituto é preciso perceber a função do acordo de leniência sobre o combate a colusões. Participantes de cartéis5 são capazes de diversas estratégias para esconder a conduta praticada e exigem métodos elaborados de investigação.6 O CADE pode recorrer à obtenção de provas a partir de buscas e apreensão e escutas telefônicas,7 mas o papel dos Acordos de Leniência tem sido prática investigativa ainda mais importante.

O acordo de leniência consta da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011 ("Lei de Defesa da Concorrência" ou "LDC") e permite a imunidade total ou parcial em relação às penas administrativas e criminais aplicáveis em troca de confissão das condutas e colaboração com as investigações. O propósito do acordo é desestabilizar cartéis existentes e detectar condutas que de outra maneira não seriam percebidas pelas autoridades.8 A falta de confiança existente entre os membros de um cartel tende a tornar esses acordos efetivos meios de desestabilizar grupos colusivos.9 Outro acordo previsto pela LDC é o Termo de Compromisso de Cessação ("TCC"), por meio do qual os beneficiários devem cessar imediatamente a conduta sob investigação e pagar uma contribuição pecuniária determinada.

Esses institutos têm ganhado relevância também no sistema financeiro. É o que mostra a investigação iniciada pelo CADE em 2015 sobre manipulação de taxas10 no mercado de câmbio envolvendo moedas estrangeiras (me especial no mercado de câmbio à vista) e no mercado de câmbio envolvendo a moeda brasileira. Também são investigados ilícitos consistentes na manipulação de índices de referência de mercado de câmbio, como os do BC ou Banco Central Europeu.11

Outro exemplo, este estrangeiro, é o chamado "Escândalo Libor", que ganhou destaque nos fins de 2013. O episódio consistiu na formação de cartel entre oito grandes instituições financeiras na Europa para influenciar artificialmente o índice Libor em função das necessidades de seus negócios12 e custou cerca de 1,7 bilhão de euros aos envolvidos.13 Libor (London Interbank Offered Rate) é uma referência da taxa de juros interbancária no mercado londrino, utilizada mundialmente e que pode abranger períodos e moedas diversos.14

As investigações sobre a manipulação das taxas de câmbio e o "Escândalo Libor" evidenciam a importância dos acordos de delação premiada na perseguição de condutas colusivas no sistema financeiro. Isso porque as investigações sobre a colusão no mercado de câmbio resultaram de acordo de leniência firmado com o CADE, enquanto a detecção do "Escândalo Libor" teve como causa determinante a delação premiada firmada entre o Banco Barclays e a Comissão Europeia. Tais acordos foram seguidos de outras delações envolvendo outras instituições financeiras investigadas.15

Nesse sentido, o CADE afirmou quando das investigações sobre a ocorrência de manipulação de taxas de câmbio: "O presente caso é um exemplo concreto da importância do Acordo de Leniência para a política de combate a cartéis e dos benefícios do uso conjunto das ferramentas instrutórias à disposição da Administração".16 As investigações iniciadas pela autoridade antitruste também resultaram em consequências no campo criminal. No dia 19 de julho de 2017, o Ministério Público Federal (MPF)17 denunciou ex- -funcionários de cinco bancos por suspeita de formação de cartel no mercado de câmbio. As condutas apontadas envolvem a fixação de preços relacionados a "spread" cambial de modo artificial e a criação de barreiras ilegais à atuação de operadores não participantes do arranjo.18

 A proeminência dos acordos sob a LDC não passou despercebida e motivou a extensão dos institutos de delação premiada a outras áreas do direito. É o que mostra a adoção do mecanismo pela Lei Anticorrupção e pela Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017, que será abordada a seguir.

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Footnotes

1. Advogado no escritório Levy & Salomão Advogados. Graduado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

2. Advogado no escritório Levy & Salomão Advogados. Graduado em direito na Universidade Federal do Maranhão. Mestrando na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

3. MARTINEZ, Ana Paula, Parâmetros de Negociação de Acordo de Leniência com o MPF à Luz da Experiência do CADE, in: Colaboração premiada. Coordenação: Pierpaolo Cruz Bottini e Maria Thereza de Assis. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, p. 33, no prelo.

4. 2003 é o ano de assinatura do primeiro acordo de leniência pela autoridade antitruste brasileira: Processo Administrativo nº 08012.001826/2003-10. Acordo de Leniência celebrado em 08.10.2003. SDE e Vigilância Antares Ltda., entre outros. D.J. 21.09.2007.

5. Em resumo, o cartel é o acordo explícito ou implícito entre concorrentes que tem como principais objetivos a fixação de preços ou quotas de produção, divisão de clientes e de mercado. Basicamente, a ação coordenada entre agentes que deveriam competir entre si pode levar à eliminação da concorrência, aumento de preços e redução do bem-estar do consumidor. O prejuízo aos consumidores reflete-se no aumento de preços, na restrição da oferta de bens ou serviços, além do comprometimento da inovação tecnológica. (CADE. Nota Técnica nº 7/2015/CHEFIA GAB-SG/SG/CADE referente ao Procedimento Administrativo nº 08700.004633/2015-04. Representante: Cade ex officio. Representados: Banco Standard de Investimentos S.A. e outros. 2015. Subtítulo II.1).

6. PEREIRA NETO, Caio Mario S.; CASAGRANDE, P. L. Direito Concorrencial – Doutrina, Jurisprudência e Legislação. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 124.

7. ARAUJO, Mariana Tavares, CHEDE, Marcio Benvenga. Repressão a Cartéis em Múltiplas Jurisdições. In: MARTINEZ, Ana Paula (Coord.). Temas atuais de Direito da Concorrência, São Paulo: Singular, 2012, p.226.

8. CADE. Nota Técnica nº 7/2015/CHEFIA GAB-SG/SG/CADE referente ao Procedimento Administrativo nº 08700.004633/2015-04. Representante: Cade ex officio. Representados: Banco Standard de Investimentos S.A. e outros. 2015. Item 18.

9. "On the other side, antitrust enforcers have a great interest in both detecting and de-stabilizing cartels. Cartel "amnesty" or "leniency" programs have been created to reward cartel members for snitching on the cartel to the Justice Department in exchange for more lenient treatment for themselves. Such programs can be very effective cartel destabilizers, given that cartel members are inherently inclined not to trust one another." (HOVENKAMP, Herbert. Federal Antitrust Policy – The Law of Competition and Its Practice, 5 ed, West Academic Publishing, St. Paul, Minn.: 2016, p.202)

10. Taxa de câmbio é o preço de uma moeda estrangeira medido em unidades ou frações (centavos) da moeda nacional. A taxa de câmbio reflete o custo de uma moeda em relação à outra. Taxas de câmbio são livremente pactuadas entre as partes contratantes, ou seja, entre o comprador ou vendedor da moeda estrangeira e o agente autorizado pelo Banco Central a operar no mercado de câmbio. (Banco Central do Brasil. Taxa de Câmbio. 2014. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/?TAXCAMFAQ. Acesso em: 28/11/2017).

11. CADE. Nota Técnica nº 7/2015/CHEFIA GAB-SG/SG/CADE referente ao Procedimento Administrativo nº 08700.004633/2015-04. Representante: Cade ex officio. Representados: Banco Standard de Investimentos S.A. e outros. 2015. Itens 1 – 6 e 22.

12. O índice que deveria refletir a média das taxas de juros pagas no mercado de curto prazo e servir como termômetro da saúde ou liquidez do sistema financeiro foi influenciado por instituições financeiras em função das necessidades de seus negócios, visando aumentar o lucro ou afastar especulações sobre problemas de liquidez enfrentados. Sobre o tema, recomenda-se: SECTION, F. Agreement. Section, U. S. D. o. J. C. D. F., Washington, 2012 e JUNQUEIRA, Thais Guimarães. O "Escândalo da Libor": indícios de ruptura ou continuidade da comunidade financeira transnacional? Universidade de São Paulo/ Instituto de Relações Internacionais (IRI). IV Seminário Discente da Pós-Graduação IRI/USP. Disponível em: http://www.usp.br/iri/documentos/seminariopos/JUNQUEIRAEscândaloLIBOR.pdf. Acesso em: 28.11.2017, p. 7.

13. MENDES, Schertel Francisco; FERNANDES, Oliveira Victor. Observatório da Legislação – Controle de condutas anticompetitivas no Sistema Financeiro Nacional. Jota, 2015. Disponível em: https://jota.info/artigos/observatorio-da-legislacao-controle-de-condutas-anticompetitivas-no-sistema-financeiro--nacional-01092015. Acesso em 28.11.2017.

14. FRONTI, Javier García; SPILA, Javier Castro. Governance, risk and financial system: the scandal of the LIBOR. Isegoria, n. 48, pp. 197-212, 2013. Disponível em: http://isegoria.revistas.csic.es/index.php/isegoria/article/viewFile/818/817. Acesso em: 28.11.2017, p. 206.

15. European Commission. Press release. Bruxelas. 2013. Antitrust: Commission fines banks € 1.49 billion for participating in cartels in the interest rate derivatives industry. Disponível em: http://europa.eu/rapid/ press-release_IP-13-1208_en.htm. Acesso em: 28.11.2017. E: CADE. Cade celebra cinco acordos em investigação de cartel no mercado de câmbio no exterior e abre nova investigação de cartel no mercado de câmbio do Brasil. Disponível em: http://www.cade.gov.br/noticias/cade-celebra-cinco-acordos-em-investigacao-de-cartel-no-mercado-de-cambio-no-exterior-e-abre-nova-investigacao-de-cartel-no-mercado-de-cambio-do-brasil. Acesso em: 28.11.2017.

16. CADE. Nota Técnica nº 7/2015/CHEFIA GAB-SG/SG/CADE referente ao Procedimento Administrativo nº 08700.004633/2015-04. Representante: Cade ex officio. Representados: Banco Standard de Investimentos S.A. e outros. 2015. Item 20.

17. MPF. Denúncia n.º 58435/2017. Procedimento Investigatório Criminal n.º 1.34.001.003438/2015-91. 19.07.2017. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/docs/sp_denuncia_cartel_spread_cambial.pdf/. Acesso em: 28.11.2017.

18. Spread é a "diferença entre taxas de juros de aplicação e de captação, compreendendo o lucro e o risco relativos às operações de crédito. Representa também a diferença entre o preço de compra e de venda de título ou moeda. Especifica o prêmio adicional que deve ser pago por um devedor em relação a uma taxa de referência." (Banco Central do Brasil. Glossário. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/pt-br/#!/c/GLOSSARIO. Acesso em: 27.11.2017).

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